Fé e razão: Bento XVI responde a um cientista ateu

Por Le Salon Beige | Tradução: Fratres in Unum.com - Bento XVI escreveu em 30 de agosto uma carta de 11 páginas ao matemático ateu Piergiorgio Oddifreddi, em resposta a um ensaio provocador que este ultimo havia publicado no início do ano ainda antes da renúncia do Sumo Pontífice. Oddifreddi escreveu:
“[...] Uma resposta surpreendente, que de fato me surpreendeu por duas razões. Inicialmente,porque o papa leu um livro que desde a capa se apresentava como uma “introdução luciferina ao ateísmo”. Depois, porque ele se propôs a comentá-lo e discutir a respeito.
Papa Bento XVIAliás, não foi por acaso que eu havia endereçado minha carta aberta a Ratzinger. Depois da leitura de sua “Introdução ao Cristianismo” [...], eu compreendi que a Fé e a doutrina de Bento XVI, diferentemente das dos outros, eram suficientemente coerentes e aguerridas para estar em medida de afrontar muito bem ataques diretos. Um diálogo com ele, ainda que imaginado à distância, poderia, pois, confirmar-se estimulante e nada banal, algo para afrontar com cabeça erguida.
Escrevendo meu livro como um comentário ao seu, eu tentei encorajar a possibilidade, ainda que distante, de que um dia o destinatário poderia de fato a receber. Eu havia pois baixado os tons sarcásticos de outros ensaios, escolhendo um estilo de permuta entre professores “em igualdade”, obviamente em sentido acadêmico do termo. Eu havia acentuado os argumentos intelectuais sobre os quais eu esperava atrair sua atenção, sem renunciar a atacar de frente os problemas internos da fé e suas relações exteriores com a ciência.
Meu foco não foi falseado, já que atingiu sua meta: que obviamente não era de tentar “converter o papa”, mas de expor honestamente as perplexidades, e às vezes incredulidade, de um matemático sobre a fé. Do mesmo modo a carta de Bento XVI não procura “converter o ateu”, mas lhe remete honestamente a perplexidade simétrica, e às vezes incredulidade, de um cristão muito especial sobre o ateísmo.
O resultado é um dialogo entre a fé e a razão que, como o assinala Bento XVI, permitiu a ambos um confronto franco, por vezes duro, no espírito dessa corte de Gentios que ele mesmo havia sugerido em 2009. Se eu esperei algumas semanas para tornar pública sua participação no diálogo, é porque eu queria estar certo de que ele não desejava mantê-la privada.
Já que recebi a confirmação, eu lhes adianto aqui uma parte da sua carta, que é deveras longa e detalhada para ser reproduzida na sua inteireza, sobremodo no preâmbulo filosófico. Ela estará em breve numa nova versão do meu livro, despojada das partes em que ele preferiu não se delongar, mas enriquecido de uma nota para incluir a descrição do início e desenrolar do que parece ser um exemplo único na história da Igreja: um diálogo entre um papa teólogo e um matemático ateu. Opostos em quase tudo, mas unidos em torno de um único objetivo: a busca da Verdade com letra maiúscula.”
“Professor Oddifreddi, (…) eu quereria agradecer-lhe por ter buscado, até nos detalhes, confrontar-se ao meu livro e assim a minha fé; em grande parte é bem isso que eu descrevera em meu discurso à Cúria Romana na ocasião do Natal 2009. Eu devo igualmente agradecer-lhe pela fidelidade com a qual o senhor tratou meu texto, procurando sinceramente fazer-lhe justiça. Meu julgamento a respeito do seu livro é de que ele é um tanto contraditório. Eu li certas partes com prazer e proveito. Em outras partes, porém, eu me surpreendi com certa agressividade e ousadia na argumentação. (…)
Por várias vezes, o senhor me fez notar que a teologia seria uma espécie de ciência-ficção. Por outro lado e curiosamente, o senhor reteve meu livro como digno de discussão tão detalhada. Permita-me, pois, indicar-lhe quatro pontos relativos a tal questão:
  1. É correto afirmar que a “ciência” no sentido mais estrito do termo, seriam somente as matemáticas, mas o senhor me aponta uma oportuna distinção suplementar entre aritmética e geometria. Em todas essas matérias científicas, os métodos científicos têm suas próprias formas segundo a particularidade de seu objeto. Assim, o essencial é aplicar o método verificável, excluir o arbitrário e garantir a racionalidade nas diferentes modalidades respectivas.
  2. O senhor deveria ao menos reconhecer que, no domínio da história e do pensamento filosófico, a teologia produziu resultados duráveis.
  3. Uma função importante da teologia é a de manter a religião ligada à razão e a razão à religião. Estas duas funções são de uma importância essencial para a humanidade. Em meu diálogo com Habermas, eu demonstrei que existem patologias da religião e – não menos perigosas – patologias da razão. Ambas precisam uma da outra e mantê-las constantemente conectadas é um dever importante da teologia.
  4. Entretanto, a ciência-ficção existe no campo das mais variadas ciências. O que o senhor expõe a respeito das teorias concernindo o início e fim do mundo em Heisenberg [ndr: Nobel de Física de 1932], Schrödinger  [ndr: Nobel de Física de 1933], etc., eu o designaria como ciência-ficção no correto sentido do termo: trata-se de visões e antecipações para chegar ao verdadeiro conhecimento, mas justamente são apenas e precisamente imagens com as quais se procura aproximar-se da realidade. O grande estilo da ciência-ficção é encontrado sobremaneira na teoria da evolução. O gênio egoísta de Richard Dawkins é um exemplo clássico de ciência-ficção. Jacques Monod [ndr: Nobel de Física de 1965] escreveu frases que seguramente ele mesmo inseriu em sua obra como se tratando apenas de ciência-ficção. Eu cito “a aparição dos Vertebrados tetrápodes… tem justamente sua origem no fato que um peixe primitivo ‘escolheu’ ir explorar a terra, sobre a qual ele era, no entanto, incapaz de se deslocar senão pulando aleatoriamente e criando deste modo, como conseqüência de uma modificação de comportamento, a pressão seletiva graças à qual se teriam desenvolvido os membros robustos dos tetrápodes. Entre os descendentes desse audacioso explorador, qual Magellan da evolução, alguns podem correr a uma velocidade superior a 70 km/h… (citação segundo a edição italiana “Il caso e la necessità”, Milão 2001, pp.117 e seguintes)
Por todos os temas discutidos até aqui, trata-se de um diálogo sério pelo qual – como eu disse repetidas vezes – eu sou grato. Entretanto não posso dizer o mesmo a respeito do capítulo sobre o sacerdote e sobre a moral católica e muito menos sobre os capítulos a respeito de Jesus. Quanto ao que o senhor diz a respeito do abuso moral de menores da parte de sacerdotes, eu posso – como o senhor bem o sabe – somente encarar o fato com profunda consternação. Eu jamais procurei mascarar tais coisas. Que o poder do mal penetre até esse ponto o mundo da fé é para nós um sofrimento que, de um lado, nós devemos suportar, porém de outro, nós devemos fazer o possível a fim de que casos similares não se reproduzam mais. Não é tampouco uma consolação saber que, de acordo com pesquisas sociológicas, a porcentagem de sacerdotes incriminados não é mais elevada que a que se apresenta para outras categorias similares. Em todo caso, não se deveria apresentar de modo ostensivo esse desvio como mácula específica do catolicismo. Se não se é permitido calar-se diante do mal na Igreja, tampouco se deve silenciar o rastro luminoso de bondade e pureza que a fé cristã traçou no decurso dos séculos. Cumpre lembrar-se das grandes personagens puras que a fé produziu – de Bento de Núrcia e sua irmã Escolástica, de Francisco e Clara de Assis a Teresa de Ávila e João da Cruz, grandes santos da caridade como Vicente de Paulo e Camilo de Lélis até Madre Teresa de Calcutá e as grandes nobres personagens do século XIX. E é verdade que a fé ainda hoje impulsiona muitas pessoas ao amor desinteressado, ao serviço dos outros, à sinceridade e à justiça. (…)
O que o senhor diz a respeito do personagem de Jesus não é digno do seu status de cientista. Se o senhor coloca a questão como se, a respeito do personagem de Jesus finalmente nós não soubéssemos nada, e que como personagem científica nada é aceitável, então eu poderia somente e decididamente convidá-lo a se tornar um pouco mais competente do ponto de vista histórico. Para tanto, eu lhe recomendo sobretudo os quatro volumes que  Martin Hengel (Faculdade de teologia protestante de Tübingen) publicou com Maria Schwemer: é um exemplo excelente de precisão histórica e de amplas informações históricas. Em contrapartida, o que o senhor diz sobre Jesus é uma ousadia que o senhor não deveria repetir. É um fato incontestável que na exegese muito se escreveu a respeito da falta de seriedade. O seminário americano sobre Jesus que o senhor cita, nas pp. 105 e seguintes, apenas confirma uma vez mais o que Albert Schweitzer escrevera a respeito de “Leben-Jesu-Forschung” (Pesquisa sobre a vida de Jesus) e que o tal dito “Jesus histórico” é no máximo o reflexo das idéias dos autores. No entanto, tais formas de trabalho mal redigidas não comprometem de modo algum a gravidade da pesquisa histórica séria, que nos trouxe verdadeiro conhecimento no que concerne o anúncio e o personagem de Jesus. (…) Ademais, eu impugno com vigor sua afirmação (p. 126), segundo a qual eu teria apresentado a exegese histórico-crítica como um instrumento do anticristo. Tratando da narração das tentações de Jesus, eu apenas retomei a tese de Soloviev de acordo com a qual a exegese histórico-crítica pode ser utilizada igualmente com o anticristo – isso é um fato incontestável. No entanto, em um mesmo momento – e em particular na premissa do primeiro volume do meu livro Jesus de Nazaré – eu esclareci de modo notório que a exegese histórico-crítica é necessária para uma fé que não propõe mitos com imagens históricas, mas que requer um método histórico verdadeiro: Assim, cumpre igualmente que o senhor apresente a realidade histórica de suas asserções de maneira científica. Por isso, não é nada correto para o senhor dizer que eu estaria interessado somente nos fundamentos imutáveis: bem ao contrário, todos os meus esforços tiveram por objetivo mostrar que o Jesus do Evangelho é igualmente o real Jesus histórico, ou seja, que se trata de uma história que realmente ocorreu. (…)
No 19°capítulo de seu livro, nós retornamos aos aspectos positivos do seu diálogo com meu pensamento. (…) Ainda que sua interpretação de João 1,1 esteja bem distante do que o evangelista quis dizer, existe todavia uma convergência que cabe ser mencionada. Porém, se o senhor pretende substituir Deus por “Natureza”, cumpre saber pois quem é essa natureza ou o que é. O senhor não a define em parte alguma e ela acaba por aparecer como uma divindade irracional que não explica nada. Eu gostaria sobretudo lhe fazer notar que em sua religião das matemáticas, três temas fundamentais da existência humana não são considerados: a liberdade, o amor e o mal. Surpreende o fato que com um simples gesto o senhor liquide a liberdade que no entanto foi e ainda é o valor fundamental da época moderna. Em seu livro, o amor não aparece de modo algum, assim como não há alguma informação a propósito do mal. O que importa o que diz ou não a neurobiologia a respeito da liberdade, no drama real de nossa história, ela está presente como uma realidade determinante e deve ser levada em consideração. No entanto, sua religião matemática nada diz sobre o mal. Uma religião negligente das buscas fundamentais permanece vazia de sentido.
Professor, minha crítica ao seu livro é em parte dura. Mas a franqueza faz parte do diálogo; o conhecimento só pode crescer desse modo. O senhor foi bem franco e eu espero que aceite minha crítica com o mesmo espírito. Em todos os casos, eu avalio positivamente o fato que através de sua confrontação com minha introdução ao cristianismo, o senhor tenha procurado um diálogo aberto com a Fé da Igreja Católica e que, não obstante os contrastes, no campo central, há várias convergências. Com minhas saudações cordiais e votos de uma boa continuação em seu trabalho.”
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