O Direito é uma profissão de palavras (D. Mellinkoff)

por Adalberto J. Kaspary 
Em toda profissão a palavra pode ser útil, inclusive necessária. No mundo do Direito, ela é indispensável. Nossas ferramentas não são mais que palavras, disse o jurista italiano Carnelutti. Todos empregam palavras para trabalhar, mas, para o jurista, elas são precisamente a matéria-prima de sua atividade. As leis são feitas com palavras, como as casas são feitas com tijolos. O jurista, em última análise, não lida com fatos, diretamente, mas com palavras que denotam ou pretendem denotar esses fatos. Há, portanto, uma parceria essencial entre o Direito e a Linguagem.
Quando o advogado recebe o cliente e escuta sua consulta, responde com palavras. Se precisa elaborar um contrato ou estabelecer um acordo, é com palavras que o faz. O mesmo sucede quando atua em defesa de seus clientes, nas diversas instâncias do Judiciário.
Os juízes e os tribunais, em suas sentenças, acórdãos e arestos, decidem mediante palavras. E a coação, ou a força, que se poderão empregar na execução desses atos terão de ajustar-se aos estritos termos do que neles se disse.
O órgão do Ministério Público, em seus pareceres, em suas intervenções na sessão do júri e em suas demais formas de atuação, procura, mediante palavras, demonstrar que, no caso sob exame, cumpre adotar a solução por ele alvitrada e defendida.
De tais considerações cabe deduzir que todo jurista deve ser um bom gramático, porquanto a arte de falar e escrever com propriedade é noção elementar de gramática.
Claro que da gramática não se cairá na gramatiquice. A linguagem deve ser viva e dinâmica, funcional e palpitante de realidade. As questões técnicas não podem fazer esquecer que a luta pelo Direito gira em torno de problemas humanos. A linguagem do jurista deve ser instrumento a serviço da eficaz prestação jurisdicional. Ela visa a fins utilitários, antes de mais nada, e não a fins artísticos.
Ao redigir, ordenam-se ideias e acontecimentos. Quanto melhor conhecermos o necessário instrumento para isso – as palavras –, com maior precisão nos expressaremos e comunicaremos. A palavra está, aqui, entendida em tudo que lhe diz respeito: seu significado preciso, sua forma correta e sua apropriada inserção em estruturas sintáticas simples e complexas.
O conhecimento das palavras supõe a consciência de seu caráter relativo. É sabido que o significado das palavras é convencional e emotivo; vago e ambíguo; que são imprecisos os conceitos; que as palavras assumem acepções distintas nas diferentes áreas do conhecimento, e até dentro da mesma área, nos diversos segmentos desta. E é bem sabido que palavras como Liberdade, Democracia, Nacionalismo, Bem Público se empregam, muitas vezes, de forma contraditória e encoberta.
A missão principal do jurista é contribuir para a realização da justiça. E a este propósito não somente não se opõem, antes para ele contribuem, os meios empregados e as formas desses meios. Fundo e forma vão tão intimamente ligados como espírito e corpo. O fundo – o sentido de justiça de uma decisão, por exemplo – pode vir determinado, ou mais exatamente fixado, pela forma sob a qual se apresenta. Na decisão, a realidade da justiça está objetivada nas palavras do magistrado.
Afirma-se – e é comumente aceito – que a linguagem jurídica é uma linguagem tradicional, ao contrário daquela das ciências aplicadas, uma linguagem revolucionária, inovadora, que constantemente incorpora novos termos e expressões.
Ocorre que o nosso Direito basicamente foi escrito em latim, língua precisa e sintética. O Direito, pela sua própria origem, tem, assim, uma linguagem tradicional; mas ele tem, ao mesmo tempo, uma linguagem revolucionária, em constante evolução, consequência da necessidade urgente de acudir a novas realidades e a soluções adequadas a estas. O acesso universal à justiça, a judicialização de um universo ilimitado de fatos, questões e situações que antes passavam ao largo do tratamento judicial, a comunicação instantânea e abrangente são algumas de outras tantas realidades que implicam a incorporação, ao Direito, de novos termos, somando-se aos já existentes.
O desenvolvimento da técnica jurídica fez com que surgissem termos não-usuais para os leigos. A linguagem jurídica, no entanto, não é mais hermética, para o leigo, que qualquer outra linguagem científica ou técnica. Aí estão, apenas para exemplificar, a Medicina, a Matemática e a Informática com seus termos tão peculiares e tão esotéricos quanto os do Direito.
Ocorre que o desenvolvimento da ciência jurídica se cristalizou em instrumentos e instituições cujo uso reiterado e cuja precisão exigiam termos próprios: servidão, novação, sub-rogação, enfiteuse, fideicomisso, retrovenda, evicção, distrato, curatela, concussão, litispendência, aquestos (esta a forma oficial), etc. são termos sintéticos que traduzem um amplo conteúdo jurídico, de emprego forçado para um entendimento rápido e uniforme.
O que se critica, e com razão, é o rebuscamento gratuito, oco, balofo, expediente muitas vezes providencial para disfarçar a pobreza das ideias e a inconsistência dos argumentos. O Direito deve sempre ser expresso num idioma bem-feito; conceitualmente preciso, formalmente elegante, discreto e funcional. A arte do jurista é declarar cristalinamente o Direito.
E o Direito tem dado, lá fora e aqui, mostras de que pode ser declarado numa linguagem paradigmática. Stendhal, romancista francês, aconselhava aos escritores o estudo do Código Napoleônico, de sua linguagem sóbria e funcional, para aperfeiçoar o estilo. Nosso Código Civil de 1916, um monumento de linguagem simples, precisa e elegante, há de – ou deveria, ao menos – servir sempre de inspiração e modelo aos que lidam com o Direito, em suas mais diversas modalidades de atuação. (O atual Código Civil, de 2002, lamentavelmente, deixa, em vários momentos, a desejar em matéria de linguagem correta, clara e precisa.).
Quem lida com o Direito, em suas diferentes concretizações, deve aspirar a expor o conteúdo mais exato na expressão mais adequada. E isso implica uma convivência definitiva – harmônica e amorosa – com a Linguagem. Direito e Linguagem constituem um par indissociável. Sem a qualidade desta, aquele faz má figura.

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